Mário Campos*
Etanol ou gasolina? Você certamente já ouviu (ou disse) essa frase, mas o que você sabe sobre os carros flex? Tecnologia 100% brasileira comemora duas décadas este ano. Bem antes de temas como descarbonização ou mobilidade sustentável ganharem o mundo, o mercado automotivo brasileiro já se notabilizava pela peculiaridade de usar um combustível limpo, o etanol, como fonte energética em seus motores a combustão.
O carro flex-fuel caiu no gosto popular dos brasileiros, sendo um item indispensável na hora de se comprar um automóvel novo. A vantagem de poder escolher o combustível no momento do abastecimento e não mais na concessionária, trouxe mais liberdade ao consumidor.
A história do uso do álcool combustível no Brasil, ou etanol, remonta aos anos 20 do século passado com o uso do USGA desenvolvido pela centenária Usina Serra Grande em Alagoas e ganhou grandes proporções com as consequências dos choques dos preços do petróleo na década de 70, primeiro com a intensificação do uso do etanol misturado à gasolina e depois com o lançamento em 1979 do primeiro veículo a álcool hidratado no Brasil. Do sucesso das vendas dos veículos a álcool, na primeira metade da década de 80, às dificuldades vistas no final desta década e ao longo da seguinte, o Brasil desenvolveu um sistema de produção e distribuição de etanol que atingiu os quatro cantos do país.
Ao final de 2002, as vendas de carros a álcool no Brasil representavam “traço” na estatística e a frota circulante caía a cada ano e já chegando a representar 15%. A oferta ainda consistente de etanol mantinha naquele momento os preços bem competitivos e muitos consumidores passaram a misturar gasolina e etanol no momento do abastecimento por conta própria, o chamado “rabo de galo”.
A indústria automobilística já desenvolvia desde a década de 80 uma tecnologia que permitisse que os veículos operassem com etanol e gasolina ao mesmo tempo. Em março de 2003, a tecnologia flex-fuel estreou com a Volkswagen apresentando, durante a festa de comemoração de 50 anos de operação no país e com direito à presença do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o Gol 1.6 Total Flex.
O modelo da Volkswagen seria o primeiro de uma série de lançamentos que ganharam o mercado, com a nova tecnologia. O “flex” brasileiro, como foi batizado, capaz de consumir etanol, gasolina ou qualquer mistura entre os dois combustíveis, de modo a dar, ao consumidor final, o direito de escolha do combustível a cada abastecimento, considerando seu custo, disponibilidade ou qualquer outro atributo de sua conveniência.
O crescimento da frota capaz de abastecer com etanol devolveu ao hidratado o potencial de concorrência com a gasolina. Uma ampla janela de oportunidades se abria para o setor sucroenergético brasileiro e o mercado interno voltava a ser ponto fundamental para o crescimento do setor no Brasil. Naquele momento, o mercado era sustentado pela mistura obrigatória de etanol anidro na gasolina e por uma frota em acelerada depreciação dos antigos carros a álcool. O lançamento do carro flex e seu sucesso a partir de 2003 muda de forma estrutural o setor sucroenergético e todo o mercado de combustíveis no Brasil. Os dados históricos demonstram a grande aceitação do flex-fluel pelos consumidores, após 2 anos de mercado, os veículos flex já representavam mais da metade das vendas no país.
A evolução do flex no Brasil decorre de uma série de fatores que auxiliaram a dinâmica da oferta de novos modelos de automóveis com essa tecnologia, o crescimento da produção de etanol no país e o incremento das estruturas logísticas, transporte, armazenamento e bombas nos postos de combustíveis.
O país passou por um crescimento vertiginoso de sua frota nos anos subsequentes ao lançamento do flex o que possibilitou sua rápida renovação. Atualmente, de cada 100 veículos rodando nas ruas e rodovias do país, 84 são flex e podem ser abastecidos com etanol. Além disso, o crescimento da preocupação ambiental e o aumento dos preços do petróleo elevaram os preços da gasolina dando ainda mais espaço para o combustível limpo e renovável.
Contudo, a mudança mais estrutural que se viu foi uma série de políticas públicas focalizadas no etanol e na sua competitividade a partir da criação de um diferencial tributário, tanto a nível federal, quanto a nível dos Estados. Já em 2001, o governo federal lançava a CIDE-Combustíveis, incidindo sobre combustíveis fósseis. Em dezembro de 2003, o então governador de São Paulo e atual vice-presidente da república, Geraldo Alckmin, sanciona a lei que reduz a alíquota ICMS do etanol hidratado de 25% para 12%, tornando-se o primeiro estado a adotar essa medida. A lei entrou em vigor em 2004 e foi seguida por outros Estados nos anos seguintes.
Atualmente, 14 Estados estabelecem diferenciais tributários de ICMS entre etanol hidratado e gasolina. A questão é tão crucial a esse mercado que em 2022 o Congresso Nacional decidiu por colocar na Constituição Brasileira, no seu capítulo que trata de meio ambiente, a obrigatoriedade de apresentar um diferencial tributário entre etanol e gasolina no que tange os impostos federais e estaduais. Com tributação menor e mais competitivo que a gasolina, o consumidor era incentivado, além de comprar um veículo flex, a também abastecer com o etanol hidratado.
Os 20 anos do carro flex-fuel chegam quando as atenções do mundo se voltam para as fontes alternativas de energia de baixa emissão, onde o etanol precisa ter um grande destaque. Além da forte tendência global de eletrificação no setor automobilístico.
O conjunto de agentes de mercado que compõem o ambiente do etanol no Brasil está atento à essa tendência e, em um movimento de antecipação, quer fazer da ameaça de mercado uma oportunidade para consolidar o papel socioambiental do biocombustível.
A eletrificação de veículos é associada aos carros movidos a bateria. Mas essa não é a única possibilidade, existem alternativas, como os modelos híbridos flex, já lançados no Brasil e a célula a combustível. Nesse último, o etanol é fonte de hidrogênio que alimenta o sistema em forma de energia.
O Brasil é um mercado pioneiro na junção do etanol à eletrificação em busca de soluções para reduzir o impacto ambiental. O carro híbrido e o movido a hidrogênio, são possibilidades diferenciadas dentro do mercado brasileiro, que já contam com apoio da indústria automobilística e de diferentes montadoras. Para um país que criou sua própria rota nos últimos 50 anos para driblar crises e incentivar ainda mais suas vocações internas, não nos parece difícil pensar que no futuro da mobilidade sustentável o etanol continuará tendo protagonismo inclusive para além das fronteiras brasileiras.
*Presidente da Associação das Indústrias Sucroenergética de Minas Gerais
Fonte: Artigo publicado originalmente na revista Opiniões – edição fev/março 2023